(Não, não é sequência de
A loja de experiências. Este é um texto que ficou engavetado por muito tempo, mas que agora o presente me permite arrematar.)
Sentada
na areia, observou o garotinho que se aproximava. Ultimamente percebia
uma mudança. Sempre quisera uma menina: já havia escolhido até o nome.
Se fosse menino, e ela nunca pensou que seria um, havia uma opção de que
gostava, mas a cunhada se antecipara. Tinha de pensar em outro.
A
criança chegou mais perto, mas ainda assim não soube adivinhar a idade
dela. Qualquer coisa que dependesse dos seus olhos restava mal avaliada.
Seu olhar era mais que míope para tantas coisas e detalhes. Parecia que
sempre apreendia uma visão geral e inexata das coisas.
O menininho a alcançou e
parou meio desconfiado. Ela usou seu melhor sorriso, mas ele ainda a
espiava como se não entendesse. Quando acenou com os dedos, ele
gargalhou, rodopiou e correu na ponta dos pés em direção aos pais, num
desafio à gravidade que só as crianças sabem propor.
Percebeu
a mudança de novo, a intuição de que o primeiro filho seria homem. Em
regra, não acreditava em intuição. Recendia a palpite romantizado. No
entanto, era bom sentir que acolhia também a possibilidade de um menino.
E o nome?
Suspirou, levantou-se, sacudiu a areia da
roupa e lançou a última olhada para o mar. Estava adiantando as coisas.
Nem grávida estava, nem casada estava. Na realidade, nem feliz estava.
Permanecia imobilizada num
status quo de sentimentos que
suspeitava não serem correspondidos pelo parceiro. Como o olhar era mais
que míope, não enxergava o tamanho da desproporção que havia, mas
sentia o vazio mal disfarçado do outro.
"Graça começou
um novo caminho", Séfora anunciou sem palavras. As outras duas duvidaram
do prognóstico. Graça costumava insistir teimosamente. Devia ser aquele
olhar meio míope.
"Você diz isso porque ela se sente triste? Ela nunca desistiu por causa disso",
questionou Sílfide enquanto observava inúmeros fios etéreos
enlaçarem-se e desenlaçarem-se. A todo momento, milhões de humanos
faziam escolhas que transformavam suas vidas. Cada opção descartada era
um fio que se desembaraçava de uns para se juntar a outros. Cada nova
possibilidade era um fio em um novo arranjo. Ali, num lugar que não era
espaço, vidas se constituíam continuamente, e a dança dos fios mostrava
os caminhos que seriam trilhados.
"Ela
pressentiu que o primeiro filho será homem. Isso não faz parte do
caminho atual", retorquiu Séfora. "Essa possibilidade só é tangível se
ela abandonar o caminho atual. Está em outro fio."
"O
parceiro dela também mudou de caminho", observou Sofia. Apontou com o
dedo de estrelas. Um fio se desvinculava de outro, que estremeceu,
estremeceu, e depois se imobilizou.
"Parece que Graça finalmente desistiu", sorriu Séfora, e os dentes eram sóis.
O fato inédito estancou as três momentaneamente, suspensas na curiosidade de como Graça procederia.
Quatro fios se aproximaram como se para formar um novo arranjo. Ondulavam cheios de promessas, mas nenhum se cingiu a outro.
"Ah, que bom. Ela percebeu. Ela reencontrou o poder de seguir sozinha," observou Sofia.
Lentamente
outros fios se juntaram aos quatro, mas também não se uniram.
Resplandeciam de possibilidades. Sílfide aprovou. "Vejam só quantos
caminhos. Que pontencialidade."
É nessas horas que a
Existência se encanta consigo. Vida é bonita demais, as três sabem.
Entendem a beleza da vontade e o palpitar da superação. A prova é esse
reluzir de segundas e terceiras e enésimas chances de felicidade.
Oniscientes, Séfora, Sílfide e Sofia captaram o nascimento de uma mudança.
Em algum lugar que era espaço, uma decisão tomada.
Um fio enlaçou outros dois, como se um único intento se houvesse cumprido.
Os dois fios se aproximaram.
"Olha, olha a serenidade dela. Olha as escolhas feitas pelos motivos certos. Pela verdade de si mesma," admirou-se Sofia.
Os
dois fios se entrelaçaram. Um novo caminho constituído, que pincelou um
sorriso de aprovação nas três e fez o cosmos cintilar milionesimamente.
Num
lugar que era espaço, no tempo dos mortais, Graça segurava a mão de
alguém, sentindo a novidade da situação. Sentados à beira de uma lagoa,
olhavam o ondular das águas, quando ela confidenciou:
"Você era tudo o que eu queria."
Ele respondeu:
"Você era tudo o que eu precisava."
E o Universo ensinou-lhes o significado da leveza de ser dois.
Obs.: Séfora, Sílfide e Sofia foram inspiradas nas Moiras da mitologia grega, mas preferi não utilizar essas personagens míticas porque me pareceram bem sinistras, rs. Então somente aproveitei a ideia dos fios e das deusas... e como vocês podem ver, Séfora, Sílfide e Sofia, ao contrário das Moiras, não intervêm na vida dos humanos. Isso fica mais próximo também de qualquer conceito que o meu ceticismo possa ter de divindade.