Finalmente
encontrara o número 36 da travessa Michelin, invisível até no Google Maps. Receou tocar a campainha
porque não encontrou placa alguma que anunciasse a loja procurada, mas, a bem
da verdade, o produto comercializado era absurdamente incomum para ser compreensivelmente
resumido em um nome ou frase. Afinal, quem entraria em uma casa onde se lesse
“Vendem-se experiências”?
Uma pessoa que viveu eternamente dentro de
uma redoma, respondeu a si mesma e absolutamente consciente de que era ela o
espécime em questão. Um
sorriso de autodepreciação acompanhou o movimento de pressionar o interruptor. Um
segundo antes de a porta abrir-se, percebeu que não sabia sequer como perguntar
se aquele realmente era o lugar.
Inquietação
inútil, porque a moça que acabara de girar a maçaneta e de oferecer-lhe a visão
de um cômodo cheio de prateleiras com frasquinhos de geleia, perguntou solícita
se ela estava ali para comprar experiências.
– É.
– Pode
entrar. Fique à vontade.
Ela
sorriu apertado e ajustou a alça da bolsa que trazia a tiracolo. Enquanto a
moça fechava a porta, percebeu que os recipientes não continham geleia, mas uma
névoa que se distinguia em cor e densidade em todos os potinhos que seus olhos
checavam.
A
moça foi providencialmente solícita mais uma vez:
– Você
vai perceber que nenhum frasco contém a mesma coisa.
Ou
talvez nem tão providencialmente assim.
– É,
percebi. Essa fumacinha aí dentro é a experiência?
– É
sim. Na prateleira tem uma etiqueta indicando a experiência que cada frasco
contém. Você já sabe o que quer?
– Ainda
não. Vou só dar uma olhadinha, tá?
– Fique
à vontade.
Demorou
um minuto para perceber que não ficaria à vontade enquanto a moça estivesse
ali, de mãos para trás, observando-a ler as etiquetas. Sentiu um ímpeto de sair
e voltar quando tivesse a certeza do que precisava.
Um
telefone tocou atrás da outra porta do recinto, e a moça finalmente a deixou.
Ressentiu-se com o serviço oferecido pela funcionária: era de esperar-se que
soubesse tratar melhor alguém tão inapto que precisava comprar experiências
alheias para ver se funcionava melhor na vida.
Aproveitando
sua liberdade temporária, aproximou-se mais das prateleiras. Em frente a um
frasco no qual um vapor acinzentado espiralava, leu a seguinte informação:
Experiência 012659
X relata que ela e Y eram amigas até se
interessarem por Z. Z escolheu Y. X tentou continuar amiga de ambos, mas
percebeu que era doloroso demais. Motivo indicado por X para a venda desta
experiência: “Quero mostrar os erros que cometi quando tentei preservar minha
amizade com Y, mas que me levaram a perder Z.”
Entortou
o nariz para esse recipiente. Era tão clichê. No entanto, intrigante observar
de perto como o comércio de experiências funcionava. Quando descobriu o site da loja na internet, leu as
informações constantes na página, mas nada comparava a ver as experiências
condensadas e descritas em termos impessoais para preservar a privacidade dos
seus fornecedores.
A
loja comprava e revendia as experiências de vida de quem as desejava vender.
Não foi informado no texto da homepage se
os ditos fornecedores, as pessoas que haviam experienciado eventos em suas
vidas que julgavam úteis para o aprendizado dos outros, perdiam ou não a
memória daquilo que vivenciaram ao vendê-lo. Mas estava bem esclarecido que quem
comprasse a experiência de um determinado fornecedor teria acesso às memórias
dele, seus sentimentos, suas conclusões e observações acerca do que se passara.
O grande lance era que o comprador adquiriria de uma só vez a sabedoria obtida
por outro através de um longo processo de encontros e desencontros. Com esse
conhecimento, era muito mais provável que o comprador não cometesse os mesmos
erros que o fornecedor cometera caso a vida ironicamente lhe apresentasse uma
situação semelhante. Era melhor do que receber conselhos, porque, ao experimentar
algo de outrem, o comprador sentiria na pele tudo o que fora vivido. Era,
portanto, didaticamente mais eficiente.
E, de
qualquer forma, ninguém segue conselhos até levar uma bordoada na cabeça.
(continua no próximo post)
Obs.: Esse texto foi escrito em julho de 2008 e foi postado aqui no início do blog. Há várias coisas de que não gosto nele, especialmente essa grande explicação do penúltimo parágrafo, mas, por preguiça ou apego, não consigo reescrevê-lo. Ao comentar esse fato com a Pessoa Inteligente, ela lançou o desafio de que eu escrevesse um novo texto em que eu revisitasse a loja de experiências. Pois bem. Então eis a primeira ida à loja (dividida em duas partes - a II está aqui) para dar o fio da meada caso consiga ir lá uma segunda vez.
Ah, e é claro que a protagonista sou eu, rs, desde a bolsa a tiracolo (companheira dos tempos em que eu não tinha carro) até os melindres com a vendedora. Vai perdoando aí, que eu estava iniciando minha mutação nesse tempo.
:o)
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