quinta-feira, 5 de julho de 2012

A loja de experiências (parte I)


Finalmente encontrara o número 36 da travessa Michelin, invisível até no Google Maps. Receou tocar a campainha porque não encontrou placa alguma que anunciasse a loja procurada, mas, a bem da verdade, o produto comercializado era absurdamente incomum para ser compreensivelmente resumido em um nome ou frase. Afinal, quem entraria em uma casa onde se lesse “Vendem-se experiências”?

Uma pessoa que viveu eternamente dentro de uma redoma, respondeu a si mesma e absolutamente consciente de que era ela o espécime em questão. Um sorriso de autodepreciação acompanhou o movimento de pressionar o interruptor. Um segundo antes de a porta abrir-se, percebeu que não sabia sequer como perguntar se aquele realmente era o lugar.

Inquietação inútil, porque a moça que acabara de girar a maçaneta e de oferecer-lhe a visão de um cômodo cheio de prateleiras com frasquinhos de geleia, perguntou solícita se ela estava ali para comprar experiências.

– É.

­– Pode entrar. Fique à vontade.

Ela sorriu apertado e ajustou a alça da bolsa que trazia a tiracolo. Enquanto a moça fechava a porta, percebeu que os recipientes não continham geleia, mas uma névoa que se distinguia em cor e densidade em todos os potinhos que seus olhos checavam.

A moça foi providencialmente solícita mais uma vez:

– Você vai perceber que nenhum frasco contém a mesma coisa.

Ou talvez nem tão providencialmente assim.

– É, percebi. Essa fumacinha aí dentro é a experiência?

­– É sim. Na prateleira tem uma etiqueta indicando a experiência que cada frasco contém. Você já sabe o que quer?

­– Ainda não. Vou só dar uma olhadinha, tá?

– Fique à vontade.

Demorou um minuto para perceber que não ficaria à vontade enquanto a moça estivesse ali, de mãos para trás, observando-a ler as etiquetas. Sentiu um ímpeto de sair e voltar quando tivesse a certeza do que precisava.

Um telefone tocou atrás da outra porta do recinto, e a moça finalmente a deixou. Ressentiu-se com o serviço oferecido pela funcionária: era de esperar-se que soubesse tratar melhor alguém tão inapto que precisava comprar experiências alheias para ver se funcionava melhor na vida.

Aproveitando sua liberdade temporária, aproximou-se mais das prateleiras. Em frente a um frasco no qual um vapor acinzentado espiralava, leu a seguinte informação:

Experiência 012659

X relata que ela e Y eram amigas até se interessarem por Z. Z escolheu Y. X tentou continuar amiga de ambos, mas percebeu que era doloroso demais. Motivo indicado por X para a venda desta experiência: “Quero mostrar os erros que cometi quando tentei preservar minha amizade com Y, mas que me levaram a perder Z.”

Entortou o nariz para esse recipiente. Era tão clichê. No entanto, intrigante observar de perto como o comércio de experiências funcionava. Quando descobriu o site da loja na internet, leu as informações constantes na página, mas nada comparava a ver as experiências condensadas e descritas em termos impessoais para preservar a privacidade dos seus fornecedores.

A loja comprava e revendia as experiências de vida de quem as desejava vender. Não foi informado no texto da homepage se os ditos fornecedores, as pessoas que haviam experienciado eventos em suas vidas que julgavam úteis para o aprendizado dos outros, perdiam ou não a memória daquilo que vivenciaram ao vendê-lo. Mas estava bem esclarecido que quem comprasse a experiência de um determinado fornecedor teria acesso às memórias dele, seus sentimentos, suas conclusões e observações acerca do que se passara. O grande lance era que o comprador adquiriria de uma só vez a sabedoria obtida por outro através de um longo processo de encontros e desencontros. Com esse conhecimento, era muito mais provável que o comprador não cometesse os mesmos erros que o fornecedor cometera caso a vida ironicamente lhe apresentasse uma situação semelhante. Era melhor do que receber conselhos, porque, ao experimentar algo de outrem, o comprador sentiria na pele tudo o que fora vivido. Era, portanto, didaticamente mais eficiente.

E, de qualquer forma, ninguém segue conselhos até levar uma bordoada na cabeça. 

(continua no próximo post)



Obs.: Esse texto foi escrito em julho de 2008 e foi postado aqui no início do blog. Há várias coisas de que não gosto nele, especialmente essa grande explicação do penúltimo parágrafo, mas, por preguiça ou apego, não consigo reescrevê-lo. Ao comentar esse fato com a Pessoa Inteligente, ela lançou o desafio de que eu escrevesse um novo texto em que eu revisitasse a loja de experiências. Pois bem. Então eis a primeira ida à loja (dividida em duas partes - a II está aqui) para dar o fio da meada caso consiga ir lá uma segunda vez.

Ah, e é claro que a protagonista sou eu, rs, desde a bolsa a tiracolo (companheira dos tempos em que eu não tinha carro) até os melindres com a vendedora. Vai perdoando aí, que eu estava iniciando minha mutação nesse tempo.

:o)

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