terça-feira, 24 de julho de 2012

Valente


Gosto tanto da Pixar, que já se tornou um princípio meu assistir às suas animações. Como um comando inexorável, se estreou um filme da companhia, lá estarei euzinha no cinema para conferir. A humanidade e a ternura em filmes como Up e Ratatouille endossam minha crença de que há sempre uma lição sobre nossa natureza nos longas da equipe Pixar. Que eles transmitam essas mensagens com humor e excelência gráfica é ainda mais um fator para justificar minha admiração.

Foi essa fé na Pixar que me fez assistir a Valente. O trailer havia me sugerido uma história clichê. O longa me confirmou isso. No entanto, há algo mais em Valente que supera o lugar comum e que abriga todo o valor do filme. E somente percebi isso quando li a resenha de Isabela Boscov na Veja.

Minha cegueira se deveu muito a um costume bem corriqueiro: perder o foco (sabe aquela miopia, rs?). Em Valente, me detive tanto na relação entre mãe e filha, que julguei rasa em comparação com a explorada em Enrolados, que não percebi a mudança de paradigma que o filme oferece às meninas.

É que, pela primeira vez em uma animação que trata de reis e rainhas e sua linha sucessória, encontramos uma princesa sem príncipe. Aliás, o melhor: uma princesa que não quer ter um príncipe. Valente não contribui com o imaginário feminino de que a felicidade somente se encontra em par (sem falar que esse par é ainda um ser perfeito, idealizado) ou que nosso objetivo último é a construção de uma família.

Aqui faço uma digressão. Enquanto escrevia o parágrafo acima, lembrei de um episódio que aconteceu há alguns meses. Reencontrei uma conhecida que não via há mais de onze anos. Jurava que ela era mais nova do que eu, mas na conversa descobri que tínhamos a mesma idade. Quando a ouvi falar da filha e do esposo, o sentimento de demérito foi instantâneo: me achei fracassada por não ter o mesmo. Quase ganhei mais dois anos de psicanálise por causa disso, rs, mas foi interessante ver como essa crença está enraizada, por mais que racionalmente a gente saiba que não faz sentido. Aí fica visível que é nesse momento que somos produto do meio. É nesse instante que o elemento cultural que nos compõe se evidencia.

Pois bem, voltando à Valente, acho imensamente salutar que exista um novo exemplo para nossas meninas. Quem sabe assim elas cresçam sabendo escolher o que desejam de verdade. Que bom que um filme protagonizado por uma princesa reafirme a importância de sermos fiéis a nós mesmos na busca de nossa felicidade. Com ou sem príncipe.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Escolhas

 (Não, não é sequência de A loja de experiências. Este é um texto que ficou engavetado por muito tempo, mas que agora o presente me permite arrematar.)




Sentada na areia, observou o garotinho que se aproximava. Ultimamente percebia uma mudança. Sempre quisera uma menina: já havia escolhido até o nome. Se fosse menino, e ela nunca pensou que seria um, havia uma opção de que gostava, mas a cunhada se antecipara. Tinha de pensar em outro.

A criança chegou mais perto, mas ainda assim não soube adivinhar a idade dela. Qualquer coisa que dependesse dos seus olhos restava mal avaliada. Seu olhar era mais que míope para tantas coisas e detalhes. Parecia que sempre apreendia uma visão geral e inexata das coisas.

O menininho a alcançou e parou meio desconfiado. Ela usou seu melhor sorriso, mas ele ainda a espiava como se não entendesse. Quando acenou com os dedos, ele gargalhou, rodopiou e correu na ponta dos pés em direção aos pais, num desafio à gravidade que só as crianças sabem propor.

Percebeu a mudança de novo, a intuição de que o primeiro filho seria homem. Em regra, não acreditava em intuição. Recendia a palpite romantizado. No entanto, era bom sentir que acolhia também a possibilidade de um menino. E o nome?

Suspirou, levantou-se, sacudiu a areia da roupa e lançou a última olhada para o mar. Estava adiantando as coisas. Nem grávida estava, nem casada estava. Na realidade, nem feliz estava. Permanecia imobilizada num status quo de sentimentos que suspeitava não serem correspondidos pelo parceiro. Como o olhar era mais que míope, não enxergava o tamanho da desproporção que havia, mas sentia o vazio mal disfarçado do outro.

"Graça começou um novo caminho", Séfora anunciou sem palavras. As outras duas duvidaram do prognóstico. Graça costumava insistir teimosamente. Devia ser aquele olhar meio míope.

"Você diz isso porque ela se sente triste? Ela nunca desistiu por causa disso", questionou Sílfide enquanto observava inúmeros fios etéreos enlaçarem-se e desenlaçarem-se. A todo momento, milhões de humanos faziam escolhas que transformavam suas vidas. Cada opção descartada era um fio que se desembaraçava de uns para se juntar a outros. Cada nova possibilidade era um fio em um novo arranjo. Ali, num lugar que não era espaço, vidas se constituíam continuamente, e a dança dos fios mostrava os caminhos que seriam trilhados.

"Ela pressentiu que o primeiro filho será homem. Isso não faz parte do caminho atual", retorquiu Séfora. "Essa possibilidade só é tangível se ela abandonar o caminho atual. Está em outro fio."

"O parceiro dela também mudou de caminho", observou Sofia. Apontou com o dedo de estrelas. Um fio se desvinculava de outro, que estremeceu, estremeceu, e depois se imobilizou.

"Parece que Graça finalmente desistiu", sorriu Séfora, e os dentes eram sóis.

O fato inédito estancou as três momentaneamente, suspensas na curiosidade de como Graça procederia.

Quatro fios se aproximaram como se para formar um novo arranjo. Ondulavam cheios de promessas, mas nenhum se cingiu a outro.

"Ah, que bom. Ela percebeu. Ela reencontrou o poder de seguir sozinha," observou Sofia.

Lentamente outros fios se juntaram aos quatro, mas também não se uniram. Resplandeciam de possibilidades. Sílfide aprovou. "Vejam só quantos caminhos. Que pontencialidade."

É nessas horas que a Existência se encanta consigo. Vida é bonita demais, as três sabem. Entendem a beleza da vontade e o palpitar da superação. A prova é esse reluzir de segundas e terceiras e enésimas chances de felicidade.

Oniscientes, Séfora, Sílfide e Sofia captaram o nascimento de uma mudança.

Em algum lugar que era espaço, uma decisão tomada.

Um fio enlaçou outros dois, como se um único intento se houvesse cumprido.

Os dois fios se aproximaram.

"Olha, olha a serenidade dela. Olha as escolhas feitas pelos motivos certos. Pela verdade de si mesma," admirou-se Sofia.

Os dois fios se entrelaçaram. Um novo caminho constituído, que pincelou um sorriso de aprovação nas três e fez o cosmos cintilar milionesimamente.

Num lugar que era espaço, no tempo dos mortais, Graça segurava a mão de alguém, sentindo a novidade da situação. Sentados à beira de uma lagoa, olhavam o ondular das águas, quando ela confidenciou:

"Você era tudo o que eu queria."

Ele respondeu:

"Você era tudo o que eu precisava."

E o Universo ensinou-lhes o significado da leveza de ser dois.



Obs.: Séfora, Sílfide e Sofia foram inspiradas nas Moiras da mitologia grega, mas preferi não utilizar essas personagens míticas porque me pareceram bem sinistras, rs. Então somente aproveitei a ideia dos fios e das deusas... e como vocês podem ver, Séfora, Sílfide e Sofia, ao contrário das Moiras, não intervêm na vida dos humanos. Isso fica mais próximo também de qualquer conceito que o meu ceticismo possa ter de divindade.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

A loja de experiências (parte II)

(parte I aqui)

(continuando...)




Um frasquinho guardava uma nuvenzinha tão vermelha e nervosa que chamou sua atenção. Ficou na ponta dos pés para ler a etiqueta:

Experiência 127846

X relata sua conduta em um ambiente de trabalho hostil e de que como foi traída por pessoas em que confiava. Motivo indicado por X para a venda desta experiência: “Quero que as pessoas aprendam a não ser ingênua como fui e que consigam vencer na vida.”

Especulou se o fornecedor dessa experiência conseguiu afinal vencer na vida. Aquela era uma lição provida por alguém que amarga derrotas até hoje ou que colhe os frutos do seu aprendizado?

Sentiu um certo incômodo e o lampejo de um pensamento por demais fugaz para se fazer concreto em sua mente. Restou a certeza de que era uma dúvida sobre o que viera fazer ali, mas o raciocínio se perdeu antes de tornar-se claro.

A terceira etiqueta que leu falava de como o fornecedor enfrentara a morte de um ente querido. Essa lhe pareceu mais útil. A inevitabilidade da morte assegurava que aquela era uma experiência válida de ser experimentada por mais desagradável que fosse. Desistiu, no entanto, quando estendeu a mão para pegar o frasco em que a fumaça negra era quase líquida. Não parecia certo comprar essa experiência. Havia um motivo por trás dessa hesitação, mas não soube precisá-lo porque de novo o pensamento lhe escapara antes de totalmente formulado.  

Algumas etiquetas depois, percebeu que não vira ainda alguma experiência boa, feliz e salutar para vender. Havia desilusões amorosas, decepções, conflitos familiares. Aos montes. Colocou as mãos na cintura e balançou a cabeça. Sentia-se ligeiramente frustrada.

– E aí? Já escolheu o que vai levar?

Era a moça que tinha voltado e que a aguardava com um ar também ligeiramente impaciente.

– Não tem nenhuma experiência alegre? – perguntou sem esperanças.

– Bom, tem aquela ali.

A moça apontou para um frasco que ficava na prateleira mais próxima ao chão, perto da porta de saída. Dentro dele, uma fumacinha dourada cintilava.

– Ah, finalmente um raio de luz em meio às trevas – brincou sério enquanto se agachava para ler a etiqueta.

Experiência 561493

X relata certos obstáculos que enfrentou e venceu. Motivo indicado por X para a venda desta experiência: “Quero mostrar que somos responsáveis pelas dádivas que recebemos na vida.”

O lampejo de novo, mas desta vez agarrou o pensamento antes que fosse, e ele tomou forma e fez sentido. Não adiantava comprar aquelas experiências em busca de sapiência e fuga da dor cotidiana. Em primeiro lugar, nada garantia que não cometesse os mesmos erros que os fornecedores caso deparasse com alguma situação semelhante. A equação era até simples: ela era diferente daquelas pessoas, logo não carregava consigo as mesmas variáveis que influenciaram nas escolhas que os fornecedores fizeram – ou que continuavam a fazer, mesmo depois de engarrafar suas memórias e sentimentos. Quem poderia assegurar que os fornecedores aprenderam com seus erros? Quem poderia assegurar que ela aprenderia? Pelo modo como apresentavam seus motivos para a venda das experiências, todos pareciam derrotados que se esforçam para revelar erros em batalhas que desistiram de travar. 

Todos exceto o fornecedor da única experiência alegre.

Em segundo lugar, talvez nada substituísse o valor de uma experiência unicamente sua. Ou talvez nada acolchoasse golpes inevitáveis da vida tais como a morte. Talvez erros devessem ser cometidos. Talvez todos tivessem de aprender a conviver com uma ausência. Ninguém ali incentivava os compradores a realmente viver.

Ninguém exceto o fornecedor da única experiência alegre.

Ninguém exceto o fornecedor da única experiência alegre e ela.

– Eu decidi o que eu quero – anunciou à moça.

– Você vai levar essa aí? – indagou a moça enquanto se aproximava da prateleira perto da porta.

­– Não. Quero vender a minha experiência de ter vindo aqui hoje.

Sentiu uma enorme satisfação em ver a moça atônita.

– Eu posso vender, não posso? – perguntou doce e sonsamente.

­– Claro, claro – respondeu a moça enquanto se encaminhava para um minúsculo balcão no canto da salinha. – A senhora vai preencher primeiro uma ficha dizendo por que a senhora quer vender essa experiência. Depois a senhora me acompanha ali pra dentro e a gente faz o procedimento e descreve a experiência para constar na etiqueta – explicou a moça ao vasculhar uma gaveta, achar um bloquinho de papel e destacar uma folha. 

– Aqui está – a moça foi solícita e entregou uma caneta juntamente com a ficha.

– Obrigada – disse enquanto preenchia o campo indicado entre aspas.

Motivo indicado por X para a venda desta experiência:

“Quero que as pessoas vivam.”

E seguiu a moça para além da outra porta do recinto. 



Obs.: Prontinho! Agora é colocar a cachola pra funcionar e revisitar a loja de experiências. Bora ver se o texto sai logo, né? :o)

quinta-feira, 5 de julho de 2012

A loja de experiências (parte I)


Finalmente encontrara o número 36 da travessa Michelin, invisível até no Google Maps. Receou tocar a campainha porque não encontrou placa alguma que anunciasse a loja procurada, mas, a bem da verdade, o produto comercializado era absurdamente incomum para ser compreensivelmente resumido em um nome ou frase. Afinal, quem entraria em uma casa onde se lesse “Vendem-se experiências”?

Uma pessoa que viveu eternamente dentro de uma redoma, respondeu a si mesma e absolutamente consciente de que era ela o espécime em questão. Um sorriso de autodepreciação acompanhou o movimento de pressionar o interruptor. Um segundo antes de a porta abrir-se, percebeu que não sabia sequer como perguntar se aquele realmente era o lugar.

Inquietação inútil, porque a moça que acabara de girar a maçaneta e de oferecer-lhe a visão de um cômodo cheio de prateleiras com frasquinhos de geleia, perguntou solícita se ela estava ali para comprar experiências.

– É.

­– Pode entrar. Fique à vontade.

Ela sorriu apertado e ajustou a alça da bolsa que trazia a tiracolo. Enquanto a moça fechava a porta, percebeu que os recipientes não continham geleia, mas uma névoa que se distinguia em cor e densidade em todos os potinhos que seus olhos checavam.

A moça foi providencialmente solícita mais uma vez:

– Você vai perceber que nenhum frasco contém a mesma coisa.

Ou talvez nem tão providencialmente assim.

– É, percebi. Essa fumacinha aí dentro é a experiência?

­– É sim. Na prateleira tem uma etiqueta indicando a experiência que cada frasco contém. Você já sabe o que quer?

­– Ainda não. Vou só dar uma olhadinha, tá?

– Fique à vontade.

Demorou um minuto para perceber que não ficaria à vontade enquanto a moça estivesse ali, de mãos para trás, observando-a ler as etiquetas. Sentiu um ímpeto de sair e voltar quando tivesse a certeza do que precisava.

Um telefone tocou atrás da outra porta do recinto, e a moça finalmente a deixou. Ressentiu-se com o serviço oferecido pela funcionária: era de esperar-se que soubesse tratar melhor alguém tão inapto que precisava comprar experiências alheias para ver se funcionava melhor na vida.

Aproveitando sua liberdade temporária, aproximou-se mais das prateleiras. Em frente a um frasco no qual um vapor acinzentado espiralava, leu a seguinte informação:

Experiência 012659

X relata que ela e Y eram amigas até se interessarem por Z. Z escolheu Y. X tentou continuar amiga de ambos, mas percebeu que era doloroso demais. Motivo indicado por X para a venda desta experiência: “Quero mostrar os erros que cometi quando tentei preservar minha amizade com Y, mas que me levaram a perder Z.”

Entortou o nariz para esse recipiente. Era tão clichê. No entanto, intrigante observar de perto como o comércio de experiências funcionava. Quando descobriu o site da loja na internet, leu as informações constantes na página, mas nada comparava a ver as experiências condensadas e descritas em termos impessoais para preservar a privacidade dos seus fornecedores.

A loja comprava e revendia as experiências de vida de quem as desejava vender. Não foi informado no texto da homepage se os ditos fornecedores, as pessoas que haviam experienciado eventos em suas vidas que julgavam úteis para o aprendizado dos outros, perdiam ou não a memória daquilo que vivenciaram ao vendê-lo. Mas estava bem esclarecido que quem comprasse a experiência de um determinado fornecedor teria acesso às memórias dele, seus sentimentos, suas conclusões e observações acerca do que se passara. O grande lance era que o comprador adquiriria de uma só vez a sabedoria obtida por outro através de um longo processo de encontros e desencontros. Com esse conhecimento, era muito mais provável que o comprador não cometesse os mesmos erros que o fornecedor cometera caso a vida ironicamente lhe apresentasse uma situação semelhante. Era melhor do que receber conselhos, porque, ao experimentar algo de outrem, o comprador sentiria na pele tudo o que fora vivido. Era, portanto, didaticamente mais eficiente.

E, de qualquer forma, ninguém segue conselhos até levar uma bordoada na cabeça. 

(continua no próximo post)



Obs.: Esse texto foi escrito em julho de 2008 e foi postado aqui no início do blog. Há várias coisas de que não gosto nele, especialmente essa grande explicação do penúltimo parágrafo, mas, por preguiça ou apego, não consigo reescrevê-lo. Ao comentar esse fato com a Pessoa Inteligente, ela lançou o desafio de que eu escrevesse um novo texto em que eu revisitasse a loja de experiências. Pois bem. Então eis a primeira ida à loja (dividida em duas partes - a II está aqui) para dar o fio da meada caso consiga ir lá uma segunda vez.

Ah, e é claro que a protagonista sou eu, rs, desde a bolsa a tiracolo (companheira dos tempos em que eu não tinha carro) até os melindres com a vendedora. Vai perdoando aí, que eu estava iniciando minha mutação nesse tempo.

:o)