sábado, 25 de setembro de 2010

Mariposas e Borboletas, de Marcela Magalhães de Paula

Na Faculdade de Direito, participei de um projeto de extensão chamado Curso Paulo Freire. Um de nossos objetivos era possibilitar aos alunos egressos da escola pública a oportunidade de frequentar um curso preparatório para o vestibular.

Na época, era professora substituta de português e auxiliava na correção das redações. Havia sempre bons textos, mas uma aluna invariavelmente entregava redações tão bem escritas, tão originais, tão literárias que me faziam esquecer a função de corretora. Essa aluna era a Marcela, que passou no vestibular para Letras, graduou-se, foi aprovada em primeiro lugar no Mestrado de Literatura da UFC, cursou ainda outro mestrado e agora conclui um doutorado na Itália! Ainda por cima, é a próxima mamãe do pedaço.

Um dia desses, pedi um texto à Marcelinha para poder postar aqui e oferecer a vocês a chance de se deliciar com sua escrita. Nesta semana, recebi esta crônica, que obteve o primeiro lugar no Prêmio Unifor de Literatura 2009, primeira edição. Não é linda?


Mariposas e Borboletas

Realmente acreditar na literatura, a arte encantatória, é uma armadilha, mas esta é uma advertência tardia, pois a presa já foi capturada e, aqui agora, começo a pensar se, e que, há uma entidade independente na arte e na vida que é a própria literatura. Certamente, muitos já pensaram assim. O que nos resta observar agora é se ela tem uma sadicidade e, então, nos matará cruelmente como uma nota aguda, única, contínua de um piano-faca ou se ela se apiedará e aí que nos mate de um só golpe.

O pior é que se pensarmos nela como Entidade então fatalmente também estamos admitindo que somos usados, meros instrumentos de uma criação inglória. Não somos Deus nem na ficção, nem nessas paredes nem em qualquer mundo. Não somos Deus e Deus é só para quem tem medo de solidão, de água pingando e respingando nas mesmas paredes geladas, de menina chorando sentada no chão de um banheiro sujo. Não somos Deus e estamos sozinhos, sem companhia certa nem equivocada. E ai, em qualquer parte do tempo imperceptível (sem que o dia ou a noite abarque) a Entidade vem e ordena coisas, rouba os amigos e as ilusões sobre qualquer divindade- até só o amor- , simplesmente porque sem que ninguém possa te escutar, sem que palavras possam sair à boca, morras sufocada e, se não quiseres, então ela permite escrever, pois é a única opção que resta. O ruim é quando você desobedece ou não se rende a esses caprichos. Ela vai deixando marcas, não nas mão como em SãoFrancisco, mas quase na testa como em Caim. Nos olhos. Na alma. E ela vicia sim e de propósito- aqui está a morte- porque há embriaguez de borbulha na nuca; há desinibição de mordida de gato no trapézio entre ombro e pescoço e com mamilos intumescidos e pêlos arrepiados. Só não há mesmo é esquecimento. Há catarse de dor, mas não o esquecimento dela. É, a literatura é um sintoma. Também: insegurança de quem, mesmo se achando capaz, tem medo da revelação: de si mesmo no papel, das palavras no papel , da exposição dos olhos transferidos para o que sempre será imperfeito: nós e o papel.

Desta insegurança e inaptidão, desta inércia; eu compartilho descaradamente. A Lispector é que, no fim e de início, estava certa finalmente:"escrever é muito perigoso". E eu juro com olhos cheios de lágrimas que sinto a espiritualidade diabolicamente erótica desta literatura do meu coração, desta cordiliteratura aristotélica, desta voz, deste sabor, do fogo e do frio. Do caleidoscópio anestésico que é a literatura, ou melhor, que é me submeter à escritura, que é me entregar ao que não sei o que é direito, nesta juventude velha, de pés descalços no chão quente. Desses buracos na cerca, desse escalar, desse manipular palavras da forma que eu não sabia que fazia: para machucar. E me matam ainda mais aqueles que não me deixam passar a cerca ou pulá-la. É sufocante não dizer o que penso, o que sinto e percebo debaixo da pele das palavras, além dos dedos entrelaçados e a quem de um ponto qualquer de música, dentro das pessoas, das coisas, do mundo e da vida. Uma paixão gratuita. É verdade, aquela pela literatura, a pela vida. Preciso escrever: como uma menina que quebra o vidrinho de doces da sala, num dia de casa cheia de visitas, só para chamar a atenção do pai, só para misturar sangue com açúcar.

A literatura não serve se não for aquela para a vida. Este é o clichê de uma infuga. E, inacreditavelmente, não consigo entender como pessoas que não amam a vida podem entender literatura, pessoas que não amam.Talvez seja assim: a frieza é uma benção para quem não tem pena de abrir sem anestesia um corpo vivo, o corpo da literatura, e consiga abrir a pele, duas vezes como repeti, só para olhar o que tem dentro. São os fortes. Nós, que sentimos muito, somos os fracos, pois subjetividade é fraqueza e pessoalidade é crime de invasão `a propriedade privada, à privacidade. Eu queria um desvio para tudo que me prende. Não consigo nem mais ler, pois as minhas palavras quando vêem as outras, começam a gritar e eu ponho as mãos nos ouvidos do meu coração para não ouvir as súplicas, os gritos infernais, porque elas são crianças presas numa jaula de zoológico, em um parque de diversão, que querem brincar na liberdade colorida do mundo lá fora, do rodopiante, das luzes, das quedas, dos horrores, do algodão doce, da adrenalina, do estar dentro mais do que um estar fora de um tocar. Tudo isso enquanto um homem olha, encostado a uma banca de artilharia viciada, com o pé também encostado à parede do balcão, mastigando, triturando um início de haste de madeira do que já tinha suportado um pedaço de carne ou uma maçã do amor. O caminho é difícil, o desvio é sempre o atalho errado. E o Deus cristão não promete felicidade, o DEUSO, enquanto eu olho chorosa a última gota entre a ponta do dedão do pé e o chão. Eu sou aquela gota de sofrimento que ainda não caiu, que sofre eternamente por um destino não cumprido, por ter feito parte de um deusinho frágil, por essa prova que sou de vulnerabilidade. Por saber da cruz e do homem, simplesmente por saber de mim e dos outros.

3 comentários:

Luciana disse...

Eita, que aluninha prodígio! É legal, né?

b arrais disse...

Pô, escreve bem mesmo a moça. E que currículo, hein? Putz! :)

b arrais disse...

Muito obrigado pelos parabéns, Raquel. O que você falou lá no seu comentário sobre ler meu texto com um sorriso lembrou-me de um texto de Vinícius, o poetinha. "Namorados Públicos", uma das crônicas de "Para Viver um Grande Amor"! É um dos meus textos favoritos. Você conhece?