terça-feira, 11 de outubro de 2011

Por falar em ser criança

"Fulano tem o rei na barriga."

Toda vez que ouvia essa expressão, me perguntava por que o fulano havia desenhado um rei na barriga dele. Imaginava o fulano e sua pança, na qual ele pintara com tinta guache uma figura bonachona, com um chapéu de guinzos que nem o do bobo da corte. Parando para pensar, acho que o monarca da minha imaginação era o rei momo que saía nas propagandas de Carnaval da Globo.

Por falar em barriga, quando ia dormir, tinha o maior cuidado ao me virar na cama. Uma vez, minha mãe me leu uma história em que uma menina gordinha nunca se deitava de barriga pra cima para não esmagar o anjo da guarda dela. Aparentemente, anjos da guarda voam sempre pelas suas costas. Eu também não queria causar o mesmo dano ao meu: me virando de mansinho, ele tinha chance de sair do lugar.

Por falar em história, foram tantas que marcaram. No Jardim II, a Raquel Melo apareceu com um texto escrito e ilustrado pela mãe dela em folhas de papel almaço. A personagem era uma boneca vagalume. Eu tinha a boneca e queria a história também, mesmo que não soubesse ler. Pedi, pedi, aperreei, aperreei, e a mãe da Raquel me escreveu uma. Na primeira série, rolava a lenda da Perna Cabeluda, com que, um dia, o Davi e o Lucas Machado fizeram tanto medo ao Bruno Raphael, que ele gritou, assustou a tia Jucileide e a fez derrubar os cadernos que guardava no armário. Havia também a história daquela música horrivelmente fúnebre que a mamãe cantava pra mim e meu irmão (que não gosta de ouvi-la até hoje). E não há como esquecer aquele conto apresentado na aula de redação da segunda série, que era sobre uma coisa azul inominada, com formato de esfera, mas com uma saliência meio fálica, se me permitem. Aquilo me intriga até hoje. Que é que estavam nos passando para ler?

Por falar em segunda série, foi naquele tempo em que decidi que ia mudar. Acordei determinada. Escovei os dentes responsavelmente (acho que, nos outros dias, eu só fingia) e dei bom dia a todos que passaram por mim nos corredores do colégio, antes mesmo que eles me vissem. Não ia mais ser tímida! Anunciei um bom dia sonoro também pra tia Conceição quanto entrei na sala de aula. A mudança só durou um dia.

Por falar em higiene bucal, lembro que eu dificultava a vida dos meus pais nesse aspecto. Então, como incentivo, eles decidiram me comprar uma linda escova de dentes cor de rosa, com desenhinhos no cabo e cheirinho de tutti-frutti. Aí foi que eu não cuidei mesmo dos meus incisivos, caninos e molares, porque tinha pena de gastar a escova.

Por falar em tutti-frutti, eu não tive um amigo imaginário. Eu tive uma turma de amigas imaginárias, que era a Turma Tutti-Frutti. Subíamos até o segundo galho da goiabeira do parque grande ou até o primeiro galho da mangueira do parque médio, porque tínhamos medo de cair (no meu colégio, havia dois parques: o grande e o médio). É claro que eu era a líder. Vê se tem cabimento você imaginar uma turma de amigas e ainda não ser a chefe.

Por falar em ser líder, eu imaginava que minha vida era uma novela em que eu era a protagonista e os outros, mero coadjuvantes. Eu também brincava de ser professora e ensinava meu dever de casa para meus ursos de pelúcia e minhas bonecas maiores, Xuxa e Mônica.

Por falar em Mônica, a do Maurício de Sousa tinha o Sansão, mas eu tinha a Dalila, minha lancheira. Quando o André Brasil e o Tiago Bezerra me chamavam de Formiga Atômica, invariavelmente levavam a Dalila na cabeça. A Dalila machucava muito porque, apesar de ser um bolsinha leve da My Melody, ela guardava uma garrafa térmica cor de rosa. Era o lanche que eu mesma preparava pra o meu recreio: uma garrafa térmica de Guaraná Antarctica. Bem nutrida desse jeito, logo se vê por que cresci tanto.

Por falar em crescer... Hoje em dia, entendo que há duas crianças dentro de mim. Há uma criança ferida, que acumulou defesas e mágoas ao longo dos anos. Preciso deixá-la crescer para agir verdadeiramente como adulta. No entanto, há também uma criança feliz, que às vezes resgato lá do fundo de mim mesma. Essa não precisa crescer. Essa pode ser criança sempre, que é para eu me tornar uma adulta sempre maravilhada com a vida.

Feliz Dia da Criança para todos nós.



3 comentários:

Henrique disse...

"Por falar em crescer... Hoje em dia, entendo que há duas crianças dentro de mim. Há uma criança ferida, que acumulou defesas e mágoas ao longo dos anos. Preciso deixá-la crescer para agir verdadeiramente como adulta." Fantástico. Feliz dia da criança! Bjs. PS. Tu num mudou nada (mesma carinha)!

Luciana disse...

Imaginação de criança é massa, mesmo, hahaha!! Sério que tu eras braba assim na infância?? Lancheirada na cabeça é forte, rsrs!!

Adorei o post. :-)

Giovanna disse...

Muito bom!! Eu também tenho um zilhão de histórias sobre minha infância feliz! Oh tempo bom, só me preocupava em brincar, comer, dormir, estudar um pouquinho, brincar de novo... hehehe...
E a criança ferida tem que ser desvendada e compreendida, com certeza! Quem não a tem?! Infelizmente, enquanto não a deixarmos ser curada, continuaremos repetindo as mesmas atitudes desagradáveis diante de certas situações...
E você tá com uma cara muito sapeca nessa foto :)
beijos!