segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Aconteceu na vida real - O ceguinho

A dona E. sempre se compadecia do ceguinho. Acontecia de vê-lo quando ia comer pizza lá no Canecanto. Sentadinha à mesa, os cotovelos sobre o granito do tampo, o queixo sobre as mãos de dedos entrelaçados, dona E. o avistava ainda longe. Ele segurava o braço de um garoto, que fazia as vezes de guia. Andavam devagar, testando o terreno até subirem a calçada da pizzaria. Depois paravam de mesa em mesa, pedindo uma ajuda pro ceguinho, pelamordedeus.

Quando alcançavam a mesa em que dona E. costumava sentar-se com marido e filhos, ela já tinha pescado os trocados de dentro da bolsa. Entregava as moedas à mão calejada do ceguinho. Prestava atenção naquelas pálpebras sempre cerradas, e invariavelmente sentia um aperto no coração de tanto dó. Em sua opinião, cegueira era pior que mudez ou surdez. Morria de medo de perder a visão.

Coitado do ceguinho.

Vez e outra, mesmo quando não estava esperando a pizza do Canecanto, lembrava-se do ceguinho. Como será que vivia? Os trocados seriam suficientes? Da próxima vez, aumentaria a ajuda. Podia perguntar sobre sua vida. Indagar da cegueira não devia ser muito educado, talvez tocasse em feridas. Mas poderia conhecer um pouco mais do ceguinho.

Como a vida é bem engraçada às vezes, o desejo de dona E. em saber mais sobre o ceguinho foi atendido, e o foi por intermédio de seu filho mais novo, o R. Um dia, o R. chegou em casa como se tivesse desvendado um grande mistério. Entrou na cozinha com um certo ar superior, pois, pela primeira vez na vida, sabia mais que sua mãe. Encontrou dona E. cortando cebolinha para incrementar o arroz do almoço. Contou o que descobrira.

E deixou dona E. de queixo caído.

É que, enquanto o R. esperava o ônibus na parada, ele avistou o ceguinho descendo a ladeira.

Andando de bicicleta.

De sorriso e olhos bem abertos.
Floreei um pouquinho, mas o fato principal aconteceu assim mesmo: a mãe de uma amiga minha sempre ajudava um ceguinho, que, mais tarde, foi flagrado andando de bicicleta pelo filho dela.

Fazer o quê? Acontece, né?

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